Nas trincheiras do dia a dia organizacional, a cena é familiar: uma corrida incessante para apagar incêndios. Problemas urgentes demandam atenção imediata, consumindo nosso foco e recursos. Concentramo-nos tanto no o quê – a falha específica, a reclamação do cliente, a meta não batida – que raramente dedicamos tempo para analisar o como – a maneira fundamental pela qual nossa organização está equipada (ou despreparada) para lidar com tipos semelhantes de desafios de forma sistemática e proativa. Investimos em soluções pontuais, apenas para ver problemas análogos ressurgirem, exigindo esforços repetidos e gerando um ciclo vicioso de reatividade.
Essa dinâmica, embora comum, é insustentável e limita o potencial de crescimento e resiliência. A alternativa estratégica reside nos projetos estruturantes. Diferentemente das ações corretivas isoladas, um projeto estruturante possui uma ambição mais profunda: construir ou aprimorar uma capacidade organizacional fundamental. O foco transcende a resolução de uma instância do problema; busca-se fortalecer a própria estrutura da empresa – “estruturar o estruturante” – para que ela possa enfrentar uma classe inteira de desafios ou capitalizar sobre novas oportunidades de maneira mais madura, eficiente e duradoura.
Seja implementando uma disciplina como Arquitetura de Software, adotando Inteligência Artificial de forma estratégica e não apenas reativa, refinando a abordagem de vendas ou desenvolvendo uma cultura de experimentação ágil, essas iniciativas, quando bem-sucedidas, deixam um legado. Elas não apenas entregam um resultado, mas instalam uma nova engrenagem na máquina organizacional.
Contudo, como garantir que essas iniciativas vitais não se tornem apenas mais um item na lista de “boas intenções” que nunca se consolidam? Como navegar a complexidade inerente à criação de algo novo e perene dentro de um sistema já existente? É aqui que um guia se faz necessário. Conforme exploramos anteriormente, o Metamodelo para Criação – um framework inspirado em princípios fundamentais de construção e refinado pela prática – oferece exatamente essa bússola. Ele nos fornece um roteiro, uma sequência lógica de etapas e considerações essenciais para organizar nosso pensamento, facilitar a comunicação e, crucialmente, aumentar as chances de sucesso ao “criar coisas”, especialmente capacidades organizacionais estruturantes.
Este capítulo detalha como aplicar os princípios do Metamodelo para Criação especificamente ao desafio de “estruturar o estruturante” em nossas organizações.
Fase 1: Definindo o Alicerce – Propósito e Mensuração
Nenhuma construção sólida começa sem um projeto claro e medidas precisas. Para um projeto estruturante, isso se traduz em clareza absoluta sobre o porquê e como mediremos o sucesso.
1.1 O Ponto de Partida Inegociável: O Propósito (O Porquê)
Esta é a etapa fundamental, o “+1” do nosso metamodelo (7+1). Antes de qualquer ação, a pergunta central deve ser respondida com profundidade:
- Por que estamos embarcando nesta jornada?
- Qual capacidade específica queremos desenvolver ou fortalecer?
- Que dor organizacional essa capacidade visa aliviar de forma consistente?
- Que oportunidade estratégica ela nos permitirá capturar?
- Como essa capacidade se alinha aos objetivos maiores da organização?
Se as respostas a essas perguntas forem vagas, genéricas ou desalinhadas, o risco de fracasso é iminente. Um propósito bem definido e comunicado serve como a estrela-guia do projeto. Ele justifica o investimento de tempo, energia e recursos, e fornece a resiliência necessária para superar os obstáculos que inevitavelmente surgirão. É a definição compartilhada do que “sucesso” significa para esta empreitada. Sem isso, a iniciativa pode facilmente se desviar, perder ímpeto ou ser abandonada ao primeiro sinal de dificuldade. Como vimos, começar sem um “porquê” claro é um convite à frustração.
1.2 Tornando o Propósito Tangível: Indicadores (Lag & Lead)
Um propósito, por mais inspirador que seja, precisa ser traduzido em algo mensurável. Os indicadores são a ferramenta para isso, transformando a intenção abstrata em resultados observáveis e comunicando o progresso de forma inequívoca. Seguindo a lógica do metamodelo e inspirados por abordagens como as 4 Disciplinas da Execução, distinguimos dois tipos cruciais:
- Medidas de Resultado (Lag Measures): Estas métricas avaliam diretamente o atingimento do propósito final da capacidade estruturante. Elas são “históricas”, refletindo o resultado consolidado após a capacidade estar operacional. São os indicadores que respondem à pergunta: “Atingimos o objetivo estratégico?”. Exemplos incluem:
- Redução Percentual no Custo Operacional de uma determinada área após a implementação de automação (capacidade de eficiência operacional).
- Aumento da Taxa de Conversão de Leads Qualificados após a reestruturação do processo de vendas (capacidade comercial).
- Diminuição no Tempo Médio para Lançamento de Novas Funcionalidades (capacidade de desenvolvimento ágil).
- Melhora no Índice de Satisfação do Cliente (CSAT/NPS) relacionado a um serviço específico (capacidade de atendimento). A alta gestão geralmente foca nestas medidas, pois elas demonstram o retorno sobre o investimento na capacidade.
- Medidas de Direção (Lead Measures): Estas métricas monitoram as atividades e comportamentos críticos que, acreditamos, impulsionarão o sucesso das Lag Measures. Elas são “preditivas” e “influenciáveis” no curto prazo, focando na adoção e execução da nova estrutura e método que estão sendo implementados. Respondem à pergunta: “Estamos fazendo as coisas certas, consistentemente, para alcançar o objetivo?”. Exemplos incluem:
- Número de Processos Chave Mapeados e Otimizados por trimestre (ligado à Lag de redução de custo).
- Percentual de Vendedores Utilizando o Novo CRM Diariamente (ligado à Lag de conversão).
- Frequência de Deployments em Produção por Semana (ligado à Lag de tempo de lançamento).
- Tempo Médio de Primeira Resposta no Atendimento (ligado à Lag de satisfação). Estas medidas permitem ajustes rápidos no percurso, garantindo que as ações necessárias estejam ocorrendo.
Definir ambos os tipos de indicadores é essencial. As Lag Measures confirmam o valor estratégico, enquanto as Lead Measures garantem que estamos no caminho certo para entregá-lo.
Fase 2: Construindo a Capacidade – Conhecimento, Estrutura, Método e Execução
Com o alicerce do propósito e da mensuração estabelecido, entramos no ciclo de construção propriamente dito, seguindo as etapas do Metamodelo para Criação.
2.1 Adquirindo Conhecimento (Iluminando o Caminho)
Esta é a primeira etapa ativa da criação no metamodelo, análoga ao “Faça-se a luz”. Antes de construir ou modificar significativamente, precisamos dissipar as trevas da ignorância. Lançar-se a uma iniciativa estruturante sem um entendimento profundo do domínio e do contexto atual é perigoso. Perguntas a serem respondidas aqui:
- Quais são as melhores práticas existentes para esta capacidade?
- Quem são as referências (internas ou externas)? O que podemos aprender com eles?
- Quais são os riscos conhecidos e as armadilhas comuns?
- Qual é a real situação atual da nossa organização em relação a esta capacidade (diagnóstico honesto)?
- Que tecnologias ou abordagens estão disponíveis?
Esta fase envolve pesquisa ativa, benchmarking, treinamentos direcionados, conversas com especialistas, prototipagem exploratória e análise de dados. O objetivo é ganhar consciência situacional e construir uma base sólida de conhecimento para informar as decisões sobre estrutura e método. Tentar pular esta etapa é contar com a sorte, e a sorte raramente é uma estratégia sustentável.
2.2 Estabelecendo a Estrutura (Os Pilares da Capacidade)
O conhecimento adquirido na etapa anterior deve guiar a definição da estrutura necessária para suportar a nova capacidade. Esta estrutura é o conjunto de recursos tangíveis e intangíveis que habilitarão o funcionamento da capacidade:
- Pessoas e Competências: Quais papéis são essenciais? Que novas habilidades são necessárias? Como desenvolver ou adquirir essas competências (treinamento, contratação, parcerias)?
- Tecnologia e Ferramentas: Que sistemas, softwares, hardwares ou plataformas são indispensáveis? Como garantir sua disponibilidade, integração e manutenção?
- Processos e Políticas: Quais fluxos de trabalho formais precisam ser criados ou ajustados? Que políticas de suporte são necessárias (ex: segurança, acesso a dados)?
- Dados e Informações: Que informações são vitais para a operação e melhoria da capacidade? Como serão coletadas, gerenciadas, protegidas e disponibilizadas?
- Ambiente e Cultura: O ambiente físico ou digital suporta a nova forma de trabalhar? A cultura organizacional incentiva ou inibe a adoção da nova capacidade?
Construir a estrutura correta, informada pelo conhecimento, é fundamental. Sem os pilares adequados, a capacidade, mesmo que bem desenhada no papel (método), não se sustentará na prática.
2.3 Definindo o Método (O Jeito de Fazer)
Com a estrutura tomando forma, o próximo passo lógico é definir o método: o “jeito de fazer” padronizado para exercer a nova capacidade. Isso envolve detalhar:
- Fluxos de Trabalho Operacionais: Quais são os passos sequenciais ou paralelos para realizar as tarefas centrais da capacidade?
- Procedimentos e Guias (Playbooks): Como executar tarefas específicas? Quais são os padrões de qualidade esperados? Como lidar com exceções comuns?
- Rituais e Cadências: Existem reuniões, revisões ou checkpoints regulares necessários para o bom funcionamento?
- Interfaces e Colaboração: Como essa capacidade interage com outras áreas da organização?
Um método claro e bem documentado garante consistência, facilita o treinamento de novos membros, permite a medição objetiva (conectando-se às Lead Measures) e cria a base para a melhoria contínua. Sem um método definido, a estrutura pode ser subutilizada ou utilizada de forma caótica, resultando em variabilidade indesejada e dificultando o aprendizado.
2.4 Executando e Aprendendo (O Ciclo de Refinamento Contínuo)
Esta etapa é onde a borracha encontra a estrada. Com um conjunto mínimo viável de Conhecimento, Estrutura e Método estabelecido, e com os Indicadores definidos, iniciamos a execução da nova capacidade. Isso pode começar de forma controlada – um projeto piloto, uma área específica, um conjunto limitado de usuários.
A execução, no entanto, não é o fim, mas o meio para um fim maior: o aprendizado e o refinamento. Durante a execução, monitoramos de perto:
- Adesão ao Método: As pessoas estão seguindo os procedimentos definidos? Onde há dificuldades ou desvios?
- Adequação da Estrutura: As ferramentas estão funcionando? As competências são suficientes? Os processos de suporte estão respondendo?
- Progresso dos Indicadores: As Lead Measures estão se movendo na direção esperada? Estamos vendo sinais iniciais de impacto nas Lag Measures?
- Feedback Qualitativo: O que os usuários e executores da capacidade estão dizendo? Quais são suas dores e sugestões?
As respostas a essas perguntas geram novo conhecimento. Este aprendizado retroalimenta o ciclo:
- O que aprendemos que invalida ou refina nosso Conhecimento inicial?
- Com base nesse aprendizado, que ajustes são necessários na Estrutura?
- Como podemos melhorar o Método para torná-lo mais eficaz ou eficiente?
- Nossos Indicadores ainda são os mais adequados para medir o progresso e o sucesso?
Este ciclo iterativo (Executar -> Medir -> Aprender -> Ajustar) é fundamental. É a experimentação estruturada em ação, transformando a capacidade de um conceito estático em um organismo vivo que se adapta e melhora com o tempo. É aqui que a verdadeira robustez é construída.
Fase 3: Consolidando e Perpetuando – Governança e Transição
Uma capacidade só se torna verdadeiramente “estruturante” quando deixa de ser um “projeto” e passa a ser parte integrante e autossustentável do funcionamento da organização. Isso exige os dois últimos passos cruciais do metamodelo.
3.1 Estabelecendo a Governança (Quem Cuida da Casa?)
À medida que a capacidade amadurece através dos ciclos de execução e aprendizado, e começa a entregar resultados consistentes (validados pelos indicadores), torna-se vital estabelecer uma estrutura de governança clara. Isso significa definir formalmente:
- Propriedade (Ownership): Quem é o responsável final pela saúde e desempenho contínuo da capacidade?
- Papéis e Responsabilidades: Quem executa quais tarefas? Quem monitora os indicadores? Quem aprova mudanças? Quem garante a manutenção da estrutura (ferramentas, treinamento, etc.)?
- Processos de Tomada de Decisão: Como as decisões sobre a evolução da capacidade serão tomadas?
- Mecanismos de Feedback e Melhoria Contínua: Como garantir que a capacidade continue a se adaptar às necessidades cambiantes do negócio e do mercado?
Muitas vezes, a liderança e os membros dessa estrutura de governança emergem naturalmente da equipe que construiu a capacidade. O ponto chave é formalizar essa responsabilidade para evitar que a capacidade se torne “terra de ninguém” e se degrade após o término do foco inicial do projeto. A governança garante a longevidade.
3.2 Planejando o Phase-out (A Transição Necessária)
Este é o sétimo e último dia da criação no metamodelo, o “descanso” do criador. E é, paradoxalmente, um dos mais críticos e frequentemente negligenciados. A verdadeira medida do sucesso de um projeto estruturante é quando a capacidade criada não depende mais funcionalmente de seus idealizadores originais para operar e prosperar.
O Phase-out é o processo deliberado e planejado pelo qual a equipe de criação (o time do projeto estruturante) transfere o conhecimento, as responsabilidades e a autoridade operacional para a estrutura de governança permanente. Não se trata de abandonar a criação, mas de reconhecer que ela atingiu a maturidade e pode “andar com as próprias pernas”.
Por que isso é crucial?
- Libera Recursos: Permite que os “criadores” (geralmente recursos valiosos e com visão estratégica) se dediquem a novos desafios, a estruturar outras partes do estruturante.
- Evita o Gargalo do “Herói”: Impede que a organização fique refém de poucas pessoas que detêm todo o conhecimento e controle sobre uma capacidade crítica.
- Promove a Escalabilidade e Resiliência: Uma capacidade que só funciona com a presença constante do criador não é verdadeiramente escalável nem resiliente a mudanças (inclusive a saída dessas pessoas).
- Completa o Ciclo de Criação: Demonstra que o objetivo não era apenas implementar algo, mas integrá-lo de forma sustentável ao organismo da empresa.
Falhar no phase-out é um erro comum, muitas vezes ligado ao apego do criador à sua criatura ou à falta de planejamento da transição. Isso pode levar a situações onde capacidades essenciais atrofiam ou morrem quando seus “campeões” se movem para outras funções ou deixam a empresa – o clássico “morrer junto com o fundador”. O phase-out bem-sucedido é a prova final de que uma capacidade verdadeiramente estruturante foi estabelecida.
Conclusão: O Legado da Estruturação Consciente
Investir em “estruturar o estruturante” é mais do que resolver problemas; é construir o futuro da organização. É uma jornada que exige mais do que esforço; exige método, disciplina e uma visão clara do destino. O Metamodelo para Criação oferece essa estrutura, guiando-nos desde a faísca inicial do propósito até a consolidação de uma capacidade robusta e autossustentável.
Ao abraçar esse processo – definindo claramente o porquê e como medir, construindo conhecimento, estrutura e método de forma deliberada, aprendendo continuamente através da execução, e garantindo uma governança sólida com uma transição planejada – transformamos boas intenções em ativos organizacionais duradouros.
O resultado transcende a solução pontual. É a criação de uma organização mais forte, mais adaptável e mais capaz de navegar pela complexidade do mundo atual. É a construção de um legado que perdura, fortalecendo a própria essência de como a empresa opera e compete. É, em suma, a arte e a ciência de estruturar conscientemente o nosso futuro.